Minha alegria
minha alegria permanece eternidades soterrada
e só sobe para a superfície
através dos tubos alquímicos
e não da causalidade natural.
ela é filha bastarda do desvio e da desgraça,
minha alegria:
um diamante gerado pela combustão,
como rescaldo final de um incêndio.
Waly Salomão, 1995. In: Algaravias: Câmara de Ecos, 1996.
fios, panos, dobras
“Quem conhece o ontem e o hoje, conhecerá o amanhã, porque o fio do tecelão é o futuro, o pano tecido é o presente, o pano tecido e dobrado é o passado”, diz um provérbio fulâni1, que se aplica, com inusitada precisão, aos procedimentos artísticos de Alberto Pitta.
Há quatro décadas envolvido com a produção de serigrafias e estampas que colorem os desfiles dos mais emblemáticos blocos do carnaval negro-baiano, Pitta tem com os fios, os panos e as dobras a mais profunda intimidade, construída diariamente ao longo de sua vida. Observando as atividades de sua mãe, Mãe Santinha de Oyá, importante yalorixá de Salvador, que se dedicava aos bordados richelieu e à educação das crianças e adolescentes da comunidade de Pirajá – seguindo a vocação comunitária do candomblé –, Pitta viu desde cedo despertar seu interesse pelos panos e seu compromisso em agregar pessoas através das palavras. Rapidamente ele entendeu que na tradição africana, da qual descende, a roupa não responde somente à necessidade utilitária de proteger o corpo; ela poderia ser igualmente um poderoso elemento significante, que inscreve o homem na natureza e o reconecta a seus ancestrais, afirmando-se como suporte da linguagem e dos marcadores sociais.
De fato, signos, formas e traços que evocam grafismos tradicionais africanos encontraram, sobre seus tecidos, um lugar privilegiado de educação das massas e de contação de histórias que só fazem sentido coletivamente. Se a escrita, na obra de Pitta, se organiza no conjunto de padrões e cores que reinterpretam a cosmovisão yorubá, a leitura, por outro lado, diz respeito à relação estabelecida no contato entre corpos em movimento, quando as ruas da cidade viram terreiro3. Pelas dobras dos tecidos que cobrem os foliões percorre um alfabeto de letras e afetos, mobilizados pela música e pela dança: é no corpo do outro que se lê o texto que nos completa. É no tecido estampado onde Pitta fortalece o princípio dos bantos, segundo o qual o ser não existe em oposição ao outro, mas no contato com aquilo que, no outro, possa lhe alterar em busca da constante renovação do sentido da vida enquanto experiência de beleza, alegria e liberdade4. “Eu escrevo até mesmo para quem não sabe ler”, diz Pitta, como quem faz prelúdio ao célebre verso de Roberto Mendes e Capinan: “vou aprender a ler pra ensinar meus camaradas”. Por isso, as palavras podem se tornar indecifráveis ao público letrado, enquanto os símbolos – máscaras, pentes, adinkras, animais, cabaças, búzios, objetos rituais –, os mais sofisticados hieróglifos sob os olhos de um iletrado. A estampa se torna, portanto, um ativador do encontro, um dispositivo de comunhão, de ligação entre dois mundos, de intercessão das flechas do tempo. Assim, o pano tecido e dobrado (que é o passado) é constituído de múltiplas possibilidades de futuros, os fios do tecelão.
Os fulânis constituem um numeroso povo nômade que ocupa ampla região do continente africano. Do Sahel à África Ocidental, os fulânis estão presentes uma dezena de países entre quais Nigéria, Senegal, Camarões, Mali, Benin, entre outros. 2 Anne Grosfilley & Danilo Lovisi. Fibres Africaines - patrimoine et savoir-faire textiles d'un continent. Milano, Silvana Editoriale, 2020, p. 11. 3 Muniz Sodré. A cidade e o terreiro. A Forma Social Negro-brasileira (1988). Rio de Janeiro, Mauad, 2019. 4 Luiz Antônio Simas. Umbandas: uma historia do Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2022, p. 155
A trama justa formada pelos fios do tempo, que acomoda a iconografia em torno da qual a obra de Pitta gravita, é traduzida no título da exposição. Inspirado em um verso do poeta baiano Waly Salomão, “eternidade soterrada” remete, por um lado, às pinturas rupestres e aos fósseis, esses resquícios do passado cristalizados no presente, que desafiam a finitude da vida e enfatizam a transformação da matéria. Essa dimensão arqueológica de sua obra se manifesta no acúmulo de camadas de cores e formas – resultante do poder da serigrafia em transformar rastro em grafo –, no trabalho com tons amenos e terrosos e na frequente alusão às pátinas e erosões provocadas pelo tempo. Por outro lado, o título remete também à alegria sufocada no ambiente doméstico, em tempos de isolamento pandêmico, período durante o qual o conjunto de obras aqui apresentado foi realizado.
cabaças, cavernas, casas
Cabaça designa os frutos das plantas da família dos Cucurbitaceae, usados por diferentes povos do mundo como recipiente para armazenamento de objetos, alimentos ou água. Para os povos Yorubá, no entanto, a cabaça é o universo reduzido à escala dos homens: Oduduwa, que é a onipotência e a capacidade de afetar e de reconstruir a realidade, é sua parte de baixo, e Obatalá, criador dos humanos, a parte de cima. A cabaça é a metáfora do útero, lugar onde a vida é gerada e regenerada. É no oco da cabaça onde as coisas se renovam e renascem. É nela onde se guarda o segredo, o mistério.
A cabaça é presença constante na obra de Alberto Pitta. Ela figura de maneira explícita em O Segredo nas Cabaças, mas também opera em uma dimensão mais profunda, acionando e articulando dois universos simbólicos caros ao artista. O primeiro é o imaginário da origem do mundo e da humanidade, onde as formas semi-abstratas das pinturas rupestres, dos homens das cavernas e do cotidiano mágico-lúdico dos caçadores-coletores se confunde a todo instante com a cultura yorubá. Basta pensar, por exemplo, em Caça, Caçador 3 e Caçador 4, pinturas que fundem a caçada pré-histórica à perspicácia de Oxóssi, orixá da caça, dos animais e da fartura, que matou o pássaro da maldade graças à sua habilidade no uso do Ofá, o arco e a flexa. Juntas, essas formas buscam situar a África como berço da humanidade e, por extensão, como nascedouro do conhecimento e da tecnologia. Essa hipótese artística encontra respaldo científico5, mas se apoia, fundamentalmente, no axé dos orixás Funfun da cosmogonia nagô – aos quais se atribui o domínio sobre a formação dos seres humanos –, em especial Oxalá, o senhor do pano branco. É ele quem molda os homens a partir da lama (Érupé) cedida por Nanã, a anciã senhora da sabedoria e dos pântanos, a quem Pitta presta homenagem através de seu Ibiri. A síntese desta articulação encontra-se no emblema do Cortejo Afro – bloco carnavalesco criado por Pitta em 1998, parte constitutiva de sua obra e chave fundamental para o entendimento de seu projeto artístico –, em cujo centro homens das cavernas caminham portando os instrumentos dos orixás. Foi também no Cortejo Afro que Pitta introduziu o uso do branco-sobre-branco, outra referência a Oxalá que se tornou marca inconfundível de sua obra gráfica, presente não somente em O Segredo das Cabaças, mas também em Asas da Liberdade e Caçador 1.
O segundo universo simbólico caro a Pitta, decorre desse primeiro: é o da forma fechada em si mesma, que encontra ampla variação, indo da forma circular e infinita da serpente – evocação a Oxumarê, orixá da transformação e do ciclo da água –, às conchas, motivo constante em suas estampas. As conchas remetem mais explicitamente aos búzios, cujos usos se estendem de moeda(cauri) à instrumento oracular do jogo de Ifá, sistema divinatório praticado pelos Yorubás, mas também ao caramujo (ìgbín), símbolo da calma e da lentidão de Oxalá, orixá que leva nas costas o peso da própria casa e controla o tempo lento da fossilização, o retorno à terra original. A cabaça reconcilia, assim, o universo da caverna e o da casa por meio da ideia da reclusão no interior oco, propício ao isolamento necessário à restauração e ao renascimento.
Como já dito, o conjunto de pinturas apresentadas nessa exposição foi inteiramente realizado durante a pandemia, quando a clausura ameaçou a natureza coletiva da obra de Pitta, mas ao 5 Chan, E.K.F., Timmermann, A., Baldi, B.F. [et al.]. “Human origins in a southern African palaeo-wetland and first migrations”, mesmo tempo ressignificou seu universo simbólico e potencializou a espessura de sua narrativa. Como nos lembrou Nei Lopes, em diversas religiões de matriz africana praticadas no Brasil, a reclusão e a solidão, impostas como medida de controle sanitário desde o inicio da pandemia de Covid-19, são condições necessárias para a iniciação do noviço, que dela sairá renascido para o orixá6. O ambiente doméstico tornou-se, assim, um espaço oscilatório entre a caverna e o refúgio, entre o cárcere e a toca, tencionando os limites entre a loucura e a meditação, entre a crueza da realidade e o sonho projetado nas paredes da casa, como no mundo selvagemente onírico dos touros de Lascaux ou Chauvet. Foi esse o limite tênue, de quem viu parte do sentido de sua obra reavaliado, que Pitta percorreu. Das cartografias do impossível presentes em Caminhos I e Caminhos II até a série organizada no salão anexo à residência Cunha Lima, que retoma o vocabulário de figuras zoomórficas, Pitta repensou o recolhimento e a intimidade enquanto repensava a sua própria técnica, ampliando os usos da serigrafia e experimentando as transparências e as sobreposições de cores e camadas gráficas.
É também em uma casa onde essas obras estão reunidas: a residência Cunha Lima, sede da Carmo Johnson Projects, acolhe um conjunto de 24 pinturas sobre tela, nas quais Pitta reescreve as histórias contadas em seus panos e as reinscreve em sua própria história, enquanto artista multimidia, para quem a estampa ultrapassa a superfície da roupa. Projetada por Joaquim Guedes, os traços da residência Cunha Lima manifestam a familiaridade do arquiteto com os traços de Lina Bo Bardi, de quem foi amigo e que concebeu (em parceria com Marcelo Suzuki) o desenho do terreiro de Mãe Santinha de Oyá, em um caso excepcional no Brasil. A integração entre a forma construída e a forma natural, aspecto comum entre os projetos, fazem do terreiro uma casa e da casa um terreiro, unidos a um só tempo pela força telúrica da caverna e pelo nó da cabaça primordial, de onde jorrou a vida.
Renato Menezes, curador
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Alberto Pitta nasceu em 1961, em Salvador, cidade onde vive atualmente. Foi observando a atividade de sua mãe, a yalorixá Mãe Santinha de Oyá, que ele viu despertar seu interesse pelos panos. Há mais de 30 anos ele se dedica à pesquisa e criação de estampas, figurinos, adereços e alegorias que caracterizam a visualidade dos blocos afro do carnaval de Salvador. Suas estampas já coloriram os Filhos de Gandi, o Ilê Ayê e o Olodum, em cuja diretoria artística permaneceu por 15 anos. Há 23 anos, Pitta criou o Cortejo Afro, bloco em que introduziu o branco sobre branco, uma das marcas mais importantes de seu estilo. Destaca-se também sua atuação junto ao Instituto Oyá, que surgiu do desejo de sua mãe em contribuir para o desenvolvimento humano, intelectual e artístico de crianças e jovens do bairro de Pirajá, onde se situa o Ilê Axé Oyá e o seu próprio ateliê. Em seu currículo consta também participação em diversas exposições em torno do mundo, em país como Alemanha, Angola, Estados Unidos, França e Inglaterra.