Véxoa: Nós sabemos

Curadoria de Naine Terena

Pinacoteca de São Paulo

A exposição Véxoa: Nós sabemos, com curadoria de Naine Terena, apresentada na Pinacoteca entre 2020 e 2021, é a primeira exposição dedicada a produção indígena contemporânea realizada na instituição.

TRAJETOS

Véxoa se instaura em um mundo em reviravolta. E não poderia ser diferente, já que é uma exposição de arte contemporânea brasileira, por assim dizer, tardia. Tardia por ser somente em 2020 que artistas indígenas realizam uma exposição desse porte na instituição que a sedia. Assim, é estabelecido um diálogo direto entre a Pinacoteca e os atores sociais da arte contemporânea de origem indígena brasileira, problematizando posturas conservadoras adotadas historicamente não só por esta instituição, mas por diversas outras do ambiente artístico.

Essa reviravolta deve também remexer com a história da arte brasileira. É possível que aloque os artistas indígenas em diferentes anos, de acordo com o tempo-espaço de suas produções. Trata-se de repensar e de recompor a linha do tempo, considerando ao menos os artistas dos quais conhecemos a produção. Eles atravessam as décadas de 1980, 1990 e 2000, começando até a citar uma arte coletiva gerada há milênios, mas que deixa de ser lembrada, ainda na invasão do Brasil.

É preciso rever os desenhos colhidos pelo antropólogo Egon Schaden (1913 - 1991) na década de 1960, realizado por pessoas Guarani-Kaiowá, acerca da subida do médico-feiticeiro ao céu. Revisitar o desenho de uma mulher Yawalapiti, feito em 1911 e recoIhido por Fritz Krause (1881-1963), no qual retrata o seu marido; e também Sibé Lana, considerado um dos precursores da arte indígena contemporânea, na década de 1960.

São todas representações gráficas, produzidas a partir do olhar dos indivíduos que as traçaram, e exprimem como eles viam suas personagens naquele momento e, segundo alguns relatos, não como eles realmente estavam, como é o caso do desenho da mulher Yawalapiti, cujo nome não foi localizado, por ter sido designada por quem recolheu seu desenho, apenas como uma mulher Yawalapiti.

Tardia também, porque essas vozes não foram ouvidas de tempo em tempo e o mundo passou por reviravoltas em que o retorno à caverna ocorreu em diferentes dimensões, mas nessa Última, não se pode dizer ainda que o isolamento foi total, visto que estamos entregues às relações midiáticas e providos de diversas informações.

Pouco se sabe se a saída dessa caverna trouxe a motivação para a construção de um novo mundo ou o alcance de outras visões de mundo. Mas sabemos que apesar de vir tardia, Véxoa vem em um novo momento.

Cabe ressaltar que a perspectiva artística indígena emerge justamente de outros mundos, que muito podem contribuir para uma sociedade com pensamento mais coletivo e isso há muito tempo não foi interpretado ou, para falar mais francamente, foi apagado como referência para a formação do país.

No campo político e de resistência - arte/ativismo -, estamos em um momento de a arte indígena dialogar com as "gentes comuns" do Brasil e do mundo. Em outros tempos, os meios de comunicação indígenas se fortaleceram e os grupos puderam se autor-representar e dizer o que pensam em e sobre os seus territórios; emergiram lideranças indígenas de norte a sul do país, ocupando espaços políticos importantes - personagens com narrativas essenciais para a luta por políticas públicas e por sobrevivência.

A arte indígena nesse momento é a tradutora de todas as falas, lutas, derrotas, vitórias, perspectivas e assume um diálogo amplo com a sociedade civil. A arte contemporânea brasileira tem uma origem forte e nativa. Sempre foi e sempre será. Véxoa (Nós sabemos). A construção da presente exposição ocupou muitas Ivas crescentes, sobrepostas por alguns dias chuvosos. Ela foi impulsionada a partir de provocações a respeito do apagamento da arte indígena pelas instituições, por curadores, pelo circuito de arte no Brasil e por todos aqueles que pensavam (ou pensam) que os lugares dessas produções são apenas os acervos etnográficos ou os grupos de venda de artesanatos indígenas.

Carece pensar que os museus etnográficos também necessitam de algumas reconsiderações sobre a arte indígena de seus acervos, além de uma reflexão sobre a estagnação da forma como os acervos são apre-sentados e, em especial, é preciso reelaborar seus setores educativos para o indígena real, contemporâneo e detentor de conhecimentos importantes para a humanidade. Essa é uma discussão que corre há algum tempo, inclusive com muitas críticas ao formato em que os objetos são apresentados ao público, às reservas técnicas e à segurança desses acervos.

Uma das questões que foi intercessora à construção de Véxoa é o fato de que a história da arte brasileira posiciona a representatividade e a expressividade de toda rica produção dos povos indígenas sobre a primeira etapa da colonização. O embranquecimento da arte no Brasil assemelha-se ao embranquecimento de sua população, cenário no qual há uma sobrevalorização das referências estrangeiras ou alienígenas em detrimento das nacionais ou indígenas.

Trazia-se na bagagem o conceito estético de arte e omitiu-se a força da produção interna e das manifestações culturais dos mais diferentes povos indígenas. Quando eram reconheci-das, suas qualidades artísticas eram tomadas como inspiração ou como referência para a arte dos não indígenas.

Em uma retomada de identidade da obra de arte brasileira, os povos indígenas serviram, e servem ainda, como inspiração para artistas não indígenas, o que nos demonstra que a presença do indivíduo indígena não é concreta, enquanto autor e produtor da obra de arte, não ao menos no campo da visibilidade. Nesse sentido, se buscarmos historicamente, o indígena sempre foi representado pelo olhar do outro, e sua arte minimizada à função utiitária, diante de um painel histórico que preferia se parecer mais com o mundo exterior do que com o interior.

Ao longo dos séculos, a arte constituída no Brasil passa por rompimentos com os padrões europeus, aproximando-se do que seria a produção artística das terras brasilis. Ao observarmos a história da arte brasileira, verificamos as diferentes transformações de discursos e de estética.

Colocada em uma linha do tempo, a arte indígena é carregada de intenções e de subjetividades, que desde sempre caracterizam a refinada força identitária dos povos aqui presentes. Tal força está alocada nas produções até os dias de hoje. Elas sempre foram originais, no que diz respeito a ter "origem". Sempre se soube de onde vieram e para onde vão, porque vão e vêm. Tais produções sempre mantiveram suas peculiaridades, o que torna mais latente sua importância dentro da história da arte brasileira. Trata-se de um conjunto que não é e não será efêmero.

A arte indígena contemporânea reapresenta a sua identidade, aproximando as linguagens, utilizando, experimentando recursos e técnicas apresentadas no momento contemporâneo. Ela mantém toda sua codificação de um universo próprio e de universos apreendidos.

Mas nós sabemos que a produção material indígena sempre foi constante e os traços artístico-culturais estão empregados nela. Sabemos também que a arte é um elemento cultural imbuído na existência indígena, e que a intuição estética perpassa desde a produção de cestarias à construcão de instalações nos dias de hoje.

Pensando em toda essa problemática, o trajeto de Véxoa dispensou muitos caminhos, inclusive aqueles que nos levariam à constituição de uma mostra etnográfica ou com teor antropológico. Dispensou também as mostras mistas com artistas indígenas e aqueles caminhos que se inspiram nas culturas indígenas, entre outras, justamente para dizer que o campo da arte indígena é extenso e abarca todas as outras disciplinas. É importante lembrar que tais disciplinas, de muitas formas, se inspiraram (ou se apropriaram) de conhecimentos inerentes aos multiversos que os povos carregam em suas cosmologias e em seus fazeres.

Certa vez, fui convidada a conhecer o acervo permanente em exposição da Pinacoteca de São Paulo. A visita foi carregada de perguntas à curadora da casa que me acompanhava, apresentando o belíssimo e incompleto acervo. Até o momento não se via obras de artistas indígenas na coleção. De maneira direta e imediata, a provocação foi feita. O resultado talvez esteja começando a ser impresso nesse novo momento tardio, mas não encerrado, de um mundo pós-pandêmico.

Dito isso, esclareço que foi preciso assinalar tudo que foi apresentado acima, para esclarecer por quais caminhos estivemos para a construção de Véxoa Nós sabemos. A seleção de 24 artistas e coletivos, e de suas obras, cartografou o país, suas diferentes localidades e tempos de produção. Muitas outras produções poderiam compor Véxoa mas o processo de "cura" nos levou até os 24 artistas/redes e suas especialidades. Houve negações; ausências; pertencimentos; atrações.

O diálogo fluiu para além do emergente questionamento da existência de uma arte indígena no Brasil. Vimos que a curiosidade sobre a existência dessa arte indígena contemporânea tem movimentado e se tornado perigosa.

Perigosa por categorizar produções e sobrepor caminhos estéticos estabelecidos milenarmente, em contraposição ao que insurge com a adequação de novas técnicas. Perigoso porque eleger representantes é também eleger maneiras de se fazer, como as reais e as adequadas. Perigoso pelo fato de a arte indígena receber tal nomenclatura apenas por ser produzida por um indivíduo indígena ou ainda por sempre retratar a temática indígena em sua abordagem.

Diz Denilson Baniwa: "Eu não escolhi nascer índio". Essas questões aos olhos dos debates que realizamos na traje-tória, parecem ocupar a superficialidade da produção indígena, não sendo necessário comprovar ou responder ao questionamento: arte indígena?

No processo de produção da exposição, surgiram diferentes posicionamentos acerca da temática que, com certeza, leva o debate e a tentativa de se enquadrar a produção artística indígena no Brasil a outros patamares, que consideram a voz dos indígenas realizadores sobre o que é a arte indígena.

Cabe ressaltar que certamente as exposições de arte indígena brasileira vão além da produção e da exposição de obras oriundas de indivíduos originários. Envolve uma cadeia muito maior, de valores implícitos e explícitos, desafia sistemas burocráticos, qualifica a existência do ser humano e suas peculiaridades e solicita de toda a equipe que se abra para as distinções que um trabalho como esse pode ter. Parece ter sido o artista makuxi Jaider Esbell (1979) quem primeiro usou o termo arte indígena contemporânea (AIC) como a força de um movimento de fixação e de reconhecimento dos artistas.

Com posições precisas e firmes, desafiou trâmites burocráticos, de produção e de diálogo entre universos de economia distintos e, sobretudo, que a arte indígena contemporânea é formada por diferentes disciplinas. "Não sou artista plástico", Esbell propaga como um mantra. Já Kássia Borges, do coletivo Movimento dos Artistas Huni Kuin (Mahku), afirma:

"Arte contemporânea do Brasil, representada pelos seus artistas indígenas, é construída pelas diversas expressões de seus para nós; é esse momento histórico, político e econômico que vivemos. Estamos em um momento impar de nossa história."

Kássia remete ao fato de que artistas indígenas falam desse momento impar sem esquecer das tradições e de seus antepassados, mas com materiais e com linguagens contemporâneas. "Podemos pintar, esculpir, usar vídeo e instalações. A arte contemporânea nos permite isso. A arte contemporânea nos permite sermos artistas com uma poética e com conceitos artísticos do momento presente", pondera a artista.

Não se aceita o segregacionismo dentro das exposições coletivas. Não se pensa que a arte indígena deve ser um anexo, em que lhes oferecem um pequeno espaço, agrupando artistas indígenas em determinado local da expografia, para cumprir uma rota de "inserção" e de falso reconheci-mento. A arte indígena é concreta e merece o "espaço" e o "reconhecimento" que lhes são conferidos pelo olhar curatorial profissional.

A pauta "ativismo / ancestralidade / tempo / não tempo/ praticante / pensantes de cosmologias e de artes" perpassou por quase todas as conversas realizadas com os 24 artistas e coletivos que compõem a presente exposição.

Apresentar o panorama da produção desses artistas, que assumem posicionamentos firmes sobre o que estão produzindo e sobre os espaços ocupados por suas obras, foi o desafio de Véxoa que pelo próprio nome manifesta: Nós sabemos! E respeitamos.

A expografia foi pensada também no sentido de que o público veja as obras em suas dinâmicas temporais próprias, e não agrupadas por questões regionais ou regidas por dominâncias cronológicas.

A coleção Bahsariwii - A Casa de Danças, de Gabriel Gentil Tukano (1954 - 2006) - produzido em papel sulfite -, obriga o espectador a adentrar naquele mundo, desconhecido de uma sociedade que cada vez mais se afasta do viver e se agarra no sobreviver. Espera-se, assim, que o público ultrapasse os limites da admiração pelas formas, cores e traços de seus desenhos. A coleção de Gentil ressignifica as dimensões visível e invisível da vida, que não se desprendem da morte, de outras vidas, do céu, da terra, da natureza, e a concretude de tudo isso, de tempos em tempos.

Kaya Agari (1986) (do povo Bakairi, MT) traz para Véxoa quatro obras: Menxu Taworeim /wenu, Tutureim Iwenu (pintura de jiboia), Kalamigare (pintura da menina moça) e Menxu. Os traços firmes e geometricamente bem acabados carregam a força da cultura Kurâ Bakairi, nas mãos de uma artista Kurâ que tem testado os diferentes suportes para expressar a história do seu povo e sua própria.

Na representação do feminino, a baiana Yacunã Tuxá (1994) utiliza das tecnologias computacionais para traçar sua identidade e seus gritos em um contexto de violência de gênero. Tuxá faz uma arte ativista feminina, trazendo fortemente ao centro de seu processo criativo o autobiográfico alinhado ao cosmológico e ao cotidiano conturbado da vida feminina brasileira, em especial a indígena. Para alcançá-las, a jovem Yacunã passeia o olhar pelas fisionomias heroicas das mulheres representadas em sua arte.

O coletivo Mahku, Jaider Esbell e Anápuàka Tupinambá trazem obras que atuam em contextos além do tridimensional, ou de qualquer outra dimensionalidade que poderia ser citada mas que ainda assim talvez não alcançasse a profundidade de suas obras. Tais produções ampliam a ideia de dimensões vividas e possíveis, dialogando com o que não está ao alcance do tempo-espaço e das perspectivas daquelas sociedades assombradas pela produtividade. O coletivo e os artistas abordam matrizes e dimensões que as formas gráficas nem sempre são capazes de representar e tecem uma relação cósmica entre mundos.

O coletivo huni kuin Mahku vem para Véxoa com uma nova etapa de criação, não mais produzindo sua obra em suportes como paredes e muros, mas pintando em tela os cantos da ayahuasca, determinados para cada exposição. Já a prática artística do Mahku baseia-se na captação do espírito de cada lugar por onde passam. Em Véxoa a pintura buscará captar as muitas dimensionalidades que a Pinacoteca de São Paulo carrega e a produção, quando finalizada, não será ameaçada pelas intempéries que um site specific sofreria em outras situações, contentando assim, os seres ali homenageados.

Jaider Esbell realiza uma sessão XAMÂMAMÃENICA e nos traz "videosfacelives" e a Árvore de todos os povos, uma produção que contou com muitas mãos e a finalização de Jaider Esbell. As videolives foram produzidas em 2020 e carregam, como aponta o artista, uma estética indígena sem edições de imagens. Mahku, Anápuäka e Jaider permitem que público conheça diferentes portais. Nessa mesma transcendência, Jaider Esbell alerta o mundo que vovó não está para brincadeira. Ao mesmo tempo em que o espectador pensa estar apreciando a obra de arte, talvez não perceba que é observado. Mas nós sabemos.

A Associação Cultural de Realizadores Indígenas (Ascuri), a jornalista e documentarista Olinda Muniz Tupinambá (1989) e os artistas Anápuàka Tupinambá e Edgar Corrêa Kanaykö (1990) fazem a conexão comunicação-arte, em produções de etnomídia indígena. O movimento de etnomídia teve impulso a partir de projetos de capacitação nas décadas de 1970 e de 1980 que se espalharam pelo país e pelo mundo, focado sempre na autonomia de fala indígena.

Olinda e os artistas da Ascuri fazem do vídeo seus suportes de problematização do mundo pelo olhar de indivíduos indígenas. Para Véxoa a diretora Olinda desenha o Kaapora, relacionando a obra com a questão ambiental, tema que a diretora tem trabalhado na prática, com a recuperação de áreas degradadas na Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguaçu - Pau Brasil, na Bahia.

Edgar Kanaykö, jovem xakriabá, lança mão das câmeras fotográficas para registrar tudo que permeia o campo do concreto e do sublime. Tais produções clamam para que se observe a obra não apenas como objeto de estudo estético, mas todo o processo de circulação social em que os significados se constituem.

O estado do Mato Grosso do Sul, local emblemático pelos intensos conflitos pela terra e pela desassistência aos indígenas sedia a Ascuri. A realidade, por vezes dura, vivida por muitos jovens da associação, não enrijeceu o olhar deles para o mundo, mas os levam a transpor para o audiovisual as diferentes facetas vividas pelos povos Terena, Kaiowá e Quéchua. Eles propagam o "jeito de ser indígena", a partir de suas produções.

Já Anápuàka Tupinambá, apresenta a Rádio Yandê, uma construção em etnomídia indígena. "O uso das tecnologias para propagar rituais e evoluções espirituais a partir de equipamentos analógicos e digitais é a forma mais simples de se explicar sobre isso", explica o artista. Anápuàka tem uma característica própria de dizer: "eu sinto vontade e faço" e por isso está sempre envolvido em novas frentes de trabalho.

O rionegrino Denilson Baniwa (1984) traz um autorretrato para nos lembrar que com a natureza não se brinca. Inspirando-se nele, solicitamos que Tamikuã Txihi - liderança feminista da Terra Indígena do Jaraguá (SP) - nos emprestasse Áxiná (exna), Apêtxiênã e Krokxi - guardiães da memória e a onça protetora de sua cria - contra as inúmeras devastações causada pela sociedade ganaciosa. "Essa sociedade que faz cinza e cadáveres da nossa irmã natureza". Mesmo com toda a sua potência, Áxiná não ficou imune ao desprezo de pessoas que a danificaram em uma exposição anterior e agora, ela está aqui, para não deixar esquecer que as toxidades matam.

O multifacetado Ailton Krenak (1953) compõe Véxoa com obras produzidas em diferentes suportes como gravura em metal, canetas hidrocor em papel, tinta acrílica, linhas, entre outros materiais. Em conversas entrecortadas e midiatizadas em meio a um cenário pandêmico, o artista revela que tem pelo menos 40 trabalhos produzidos no começo do século XXI, com diversos materiais e técnicas. "Takrukrak - testando a canetinha do Jaider - está na galeria dele em Boa Vista", conta Ailton, enquanto desenrola as possibilidades de obras para Vexoa.

Takrukrak veio de uma visão de como o mundo dele, o contato dele com os outros serezinhos, aparecem na obra. Krenak segue o caminho de se reunir com os mais novos e fazer aquilo que resumiu em arte - fruição do espírito e fazeres. Mas aponta: "Trato tudo como brincadeira. Brinco de alguma coisa" - e assim nasce a arte.

NÃO É ARTESANATO, É ARTE, AUTONOMIA, GIRAFA-MBYA!

Véxoa desdobra-se também em tocar em uma questão muito cara aos indi-genas: a redução de sua produção e, consequentemente, de seu valor simbólico e econômico. O artista curitibano Gustavo Caboco problematiza a "indigena-girafa-africana" que agora também é indígena-brasileira, entre outros atravessamentos. Ele faz uma menção ao fortalecimento de uma rede de artistas no sul do Brasil que, para Véxoa traz a colaboração de sua mãe, Lucilene (Wapichana), e de Juliana Kerexu (Guarani-Mbya), na composição de obras que retém o imaginário não indígena da produção artesanal.

Esse conjunto problematiza o quanto o olhar para a criação indígena ainda está imbuído de "pré-conceitos" e como a produção de artefatos, agregando novos valores simbólicos, gera o pensamento de alienação ou de aculturação para artistas e para grupos indígenas que as desenvolvem. Porém, de um olhar de dentro para fora, tal fato resolve a questão de geração de renda (talvez a única renda de várias comunidades indígenas espalhadas Brasil afora).

Na outra ponta, estão os Yudjá, do Baixo Xingu, com suas panelas. As grandes servem para guardar o caxiri, bebida fermentada à base de mandioca; as médias para guardar farinhas e cozinhar o peixe; as pequenas decoram e são muito utilitárias no dia a dia, podendo inclusive ser usadas de outra forma, como fazem as mulheres que fabricam para o comércio e agregam alguma renda para a família. Não são simples panelas: são reelaborações constantes de sobrevivência física, cultural, biológica e identitária.

"Está incorporada em nós; a girafa se transmuta em Guarani-Mbya-Wapichana quando eu me apresento em conjunto com a Juliana, na nossa arte. Na Tekoa Takuaty, ela é Girafa-Mbya. E isso também podemos fazer, ok? Se a gente quiser. Esse papo é sobre nossa autonomia", problematiza Gustavo Caboco.

Na ampliação de possibilidades e de visões, temos a presença dos Praiás Pankararu, viventes em São Paulo, das máscaras Atujuwá, do povo indigena Wanja, oriundas do Parque Indígena do xingu, e de mulheres Terena de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul, com a retomada de cantos lúdicos e ritualísticos. Essas três últimas atividades exigiram muito mais do que a compreensão do que é uma boa produção de exposição de artes ou, ainda, de como se montar uma exposição de arte brasileira com artistas indígenas. Inserir esses repertórios na exposição requereu de cada profissional a amplitude de conceitos, de olhares e de aceitação do outro (e que, digo de passagem, a equipe não demonstrou dificuldades tampouco inseguranças com o que estava à sua frente).

Tivemos que aguardar longos processos de autorizações humanas e cosmo-lógicas. Remanejamentos; compreensão de mundo, medos e inseguranças. Medos pelo tratamento que diferentes equipes e espaços expositivos dão a esses corpos em movimento. Inseguranças em como esses entes seriam transportados, recebidos, expostos (ou não) em seu destino final. Clarice Pankararu foi incisiva em dizer que os Praiá não ficariam expostos. Não são objetos. Eles poderiam visitar nossa exposição e retornar para o local onde podem descansar com tranquilidade.

O cuidado com aqueles entes que viajariam quilômetros de distância, empacotados, organizados, ventilados e com aquelas pessoas que aceitaram o desafio de expressar pelas suas vozes e corpos, performatizando a herança dos antepassados. Temeram, filtraram, reaprenderam, relembraram como cantavam e cantam os mais velhos, do lúdico ao ritualístico.

As máscaras Wauja estão sob a guarda do Museu de Arte da Universidade Federal do Paraná. Elas são utilizadas em rituais de cura e sua autoridade deve ser preservada para a segurança de todos.

Véxoa: Nós sabemos abre as portas para o público após um longo período de distúrbio sociopolítico mundial, momento no qual todos precisaram retornar para as suas cavernas, rever, reencarar o seu eu. Nós sabemos que muitos foram tombados nesse momento. Muitos sofreram com as mazelas causadas direta ou indiretamente pela pandemia de Covid-19. Nós sabemos também que foi preciso mais do que nunca retomar processos rituais cotidianos, reviver e recriar hábitos. Nós sabemos que foi preciso sermos resilientes, como são e sempre foram os povos indígenas. Nós sabemos, de todas as forças desprendidas para você chegar até aqui.

Naine Terena, 2020

 
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