A exposição Cantos de Imagens é a primeira mostra unicamente destinada à produção do coletivo MAHKU (Movimento dos Artistas Huni Kuin) em território nacional. A exposição é resultado de um projeto colaborativo iniciado há mais de um ano, que contou com a produção de Carmo Johnson Projects, a acolhida de Cláudio Cretti, diretor artístico da Casa de Cultura do Parque, e a supervisão dos curadores Daniel Dinato e Ibã Huni Kuin, o catalisador do coletivo. Um dos objetivos desse projeto conjunto foi o de estimular a “profissionalização” do coletivo visando sua inserção mais efetiva no mercado de arte. Como defende Ibã: vende tela, compra terra, barco, gasolina, roçadeira etc., e, com isso, se fortalece os modos de vida dos membros do coletivo e de suas famílias. Para o MAHKU, o trabalho artístico e intelectual está em completa consonância com o trabalho manual, ambos sustentando à vida coletiva nas aldeias. O pincel é nosso terçado, costumam afirmar os artistas.
Um dos eixos principais de atuação do coletivo é a busca constante por autonomia nas relações com os não indígenas. Resistentes do violento ciclo da borracha os integrantes do coletivo anseiam o justo propósito de “nunca mais ter patrão”. A venda de obras, nesse sentido, pode ser entendida como mais uma das estratégias centenárias de resistência dos Huni Kuin, que, como diversos outros povos indígenas amazônicos, se apropriam de técnicas alóctones para fortalecerem-se. Em 2014, com o valor recebido pela venda de uma tela, compraram cerca de dez hectares de terra, onde desenvolvem o Centro MAHKU Independente, um local de pesquisa, de preservação da floresta e dos saberes Huni Kuin.
O MAHKU é um coletivo de artistas e pesquisadores Huni Kuin, povo indígena de cerca de 14 mil pessoas que vive no estado do Acre e no Peru. O grupo é composto, atualmente, por Ibã Huni Kuin, Kássia Borges, Pedro Maná, Cleiber Bane e Acelino Tuin. Fundado em 2013, no município de Jordão, no estado do Acre, o coletivo é um desdobramento das pesquisas de seu fundador, Ibã Huni Kuin, sobre os cantos huni meka (os cantos que conduzem os rituais com ayahuasca entre os Huni Kuin). Sua investigação de retomada dos cantos resultou no livro “Nixi pae, o espírito da floresta” de 2006. Três anos depois, em 2009, seu filho Bane começou a desenhar esses cantos. Segundo ele conta, era mais fácil decorar as letras e compreender os cantos ao transformá-lo em imagem. Bane criou assim um método de aprendizagem dos huni meka que foi posteriormente coletivizado e transformado no MAHKU. Hoje, ao pintarem, os artistas dão sequência à aprendizagem coletiva dos cantos, além de estabelecerem um diálogo mais simétrico com o universo não indígena, sobretudo com o circuito de arte contemporânea.
As imagens figurativas tais como as que vemos aqui, chamadas de dami pelos Huni Kuin, são “os caminhos (bai) abertos pelo nixi pae capazes de colocarem o cantador em relação aos yuxin (“espíritos”) ali presentes, ou ao ‘povo do nixi pae’, aqueles que realmente compreendem as palavras especiais do canto composto na língua dos antigos (shenipabu hãtxa)”. Percebe-se que existe uma não compreensão constituinte aqui. Há, poderíamos dizer, um excesso de significado que os artistas têm de lidar e eles o fazem “colocando os cantos no sentido”, tal como diz Ibã, através da pintura. Não há como explicar os cantos, repetem muitas vezes os artistas, é melhor ver. Com as pinturas, os artistas nos dão um acesso parcial e por eles controlado a esse conhecimento.
Na exposição Cantos de Imagens, buscamos ressaltar a qualidade pessoal de manifestação artística, apresentando diferentes versões dos cantos e das mirações. Ainda que o fundo mítico e ritual das obras seja coletivo, cada artista transforma o canto huni meka de uma forma específica e, assim, o coletivo mantém também uma certa autonomia e independência interna. Como os integrantes do MAHKU costumam dizer, mesmo que pintado mil vezes o mesmo canto, ele nunca sairá igual. Sempre diverso, sempre único. Para completar, a jiboia, dona dos conhecimentos da ayahuasca entre os Huni Kuin, se faz presente através da escultura monumental de Kássia Borges. Que possamos olhar com calma e atenção esse universo, contemporâneo ao nosso, ao qual os artistas nos dão, gentilmente, acesso.