#8 Ser Ecológico

Curadoria de Ana Carolina Ralston

Fotos de Samuel Esteves

“Pronto, você assegurou-se finalmente que nunca será ecológico”, afirma Timothy Morton, entre as últimas palavras da publicação que dá nome a esta exposição. No entanto, é justamente aí que percebemos o caminho que o filósofo e crítico literário inglês nos sugere. Somos seres simbióticos entrelaçados em outros seres simbióticos. Nossa microbiota bacteriana está vibrando, estamos respirando o ar a nossa volta e a evolução silenciosa se desdobra pelos diversos planos que nos rodeiam. Não estivemos separados nem por um segundo de outros seres biológicos, tanto dentro quanto fora de nosso corpo. Sensivelmente, estamos em afinação com tudo que está acontecendo em nosso mundo. Fato é que nunca seremos ecológicos; isso porque simplesmente nós somos ecológicos. A certeza do nosso pertencimento nessa teia de interconexões sem centro nem contornos nos retira do papel ativo de nos tornarmos algo em um futuro próximo ou distante para o inevitável presente a que pertencemos. As maneiras de habitar esse espaço vigente e adquirir consciência do que de fato significamos é amplificada pelas produções artísticas de Esther Bonder, Hildebranda, Ricardo Cardim, Tamikuã Txihi e Walmor Corrêa na Carmo Johnson Projects.

As formas de arte têm muito a nos dizer sobre o meio ambiente, porque nos fazem questionar a realidade em que vivemos. E para questionar é necessário estarmos expostos a distintas visões sobre um mesmo tema. Perceber a malha de interconexão a que estamos todos, sejamos seres animados ou inanimados, implica em realizarmos que somos diferentes, estranhos e estrangeiros, habitando um mesmo mundo. Assim, as visões subsequentes de artistas de diferentes partes do Brasil, com distintos anseios, ideais e ancestralidades, nos fazem ver os caminhos possíveis. Se ecologia é coexistência radical, então precisamos questionar nosso senso do que é real e do que é irreal, do que se pode considerar existente e inexistente, ser e parecer.

As pinturas da carioca Esther Bonder exibidas nesta mostra falam justamente sobre esse caminho entre o real e o imaginário. Na série “Autorretratos Amazônicos”, a artista mistura seu traço figurativo a memórias vividas na floresta tropical. O título do conjunto de pinturas apresentado nos leva a uma reflexão sobre nossa própria projeção quando retratamos um bioma ou uma experiência ambiental. Os cientistas chamam esse raciocínio de “viés de confirmação”, já alguns filósofos o nomeiam de “círculo hermenêutico” e “estilo fenomenológico”. A forma como interpretamos os dados depende daquilo que queremos encontrar. Assim como, a maneira como nos enxergamos segue do tipo de pessoa que somos. Assim, a trajetória de Bonder influi diretamente no viés que escolheu para representar pictoricamente. Paisagista de formação, foi pupila de Burle Marx (1909-1994) e conta que após anos criando arranjos exuberantes, certo dia escutou uma das plantas que cortava gritar de dor. A experiência a levou de volta aos lápis e pincéis e a suas paisagens reais e imaginárias que hoje vibram como janelas em espaços contidos.

As janelas que rompem e nos permitem ver para além dos lugares que habitamos, ou a que muitas vezes estamos sujeitos, podem ser encontradas na produção contundente da também carioca Hildebranda. Buracos criados pela artista na série “Carne Viva” exacerbam as diversas camadas possíveis que sua obra – e também nossa própria realidade – possui. Em outro conjunto, “Dobradura”, a artista reconecta tais suturas, na tentativa de reconstrução da vida e, quem sabe, de um futuro verossímil. Em sua pesquisa, Hildebranda busca no seu forte vínculo com a palavra e na imersão recente em pigmentos naturais a conexão mais direta com o universo ambiental. 

Um organismo vivo criado por espécies que habitaram por séculos a terra que hoje se encontra este espaço expositivo é o cerne da obra site specific desenvolvida pelo botânico, paisagista e artista visual paulistano Ricardo Cardim. Espécies se entrelaçam em formações circulares, recriando os contornos que aconteciam pelas queimadas naturais típicas da Mata Atlântica. Bromélia, imbé, guaimbé, dicorisandra, clúsia lanceolata são algumas das espécies do bioma que surgem tanto na instalação viva como na pintura a óleo apresentada por Cardim. Destaque, pontua o artista, para o guaimbé, uma planta importante na história da cidade de São Paulo, já que suas raízes eram usadas para amarrar as casas e até os barcos séculos atrás, antes mesmo da invenção dos pregos.

Se ecologia não é distância e sim coexistência, aqui também se desvenda a produção da artista, poeta do povo Pataxó (BA) e liderança da Terra Indígena Jaraguá, Tamikuã Txihi. Em sua obra, Tamikuã oferece a convivência entrelaçada entre humanidade e animalidade. A potência ancestral da onça-pintada apresenta-se em muitas de suas pinturas e esculturas como a personificação da força vital. Arte, pra ela, é uma das ferramentas de resistência e reativação da memória dos povos originários que confluíram de forma mais simbiótica com os reinos vegetal e mineral nos últimos milhares de anos. 

A verdade é que o que chamamos de natureza é monstruoso e mutante, estranhamente estranho até o fundo e em todos os sentidos, como define Morton. E nessa maravilha imprevisível vivem os seres fantásticos e suas possibilidades de existência, como reconhecemos na instigante produção do gaúcho Walmor Corrêa. Fascinado por anatomia desde a escola, quando se apaixonou por dissecações e desenhos de Leonardo Da Vinci, o artista visual nos desperta a divagar por inúmeras possibilidades de vivência. Fantasiar novas espécies biológicas, improváveis dentro do processo evolutivo, que poderiam ser o resultado de mutações de DNA e de seus simbiontes – o que darwinistas chamariam de “fenótipos estendidos” – resulta em possibilidades de adaptação e, por que não, de talvez sobrevivermos à catástrofe que hoje se revela como a sexta extinção em massa. 

A consciência ecológica é também a consciência de consequências não intencionais, mas nem por isso menos graves. Ser contrário ao antropocentrismo não significa que odiamos os humanos e queremos nossa própria extinção. Significa ver como estamos incluídos na biosfera como um ser entre outros seres. 

Ana Carolina Ralston
curadora

 
Carmo Johnson Projects