#7 O corpo que transborda forma

Curadoria de Paula Borghi

Fotos de Samuel Esteves

Ainda se está longe de alcançar as múltiplas possibilidades que o corpo consegue atingir, sobretudo quando se trata da trança de suas potencialidades físicas, cognitivas e espirituais. Cada corpo é um universo e não há uma regra para sua compreensão, contudo não é por isso que não se tente compreendêlo, ainda mais no que se refere a arte. Reunindo quatro artistas que variam em gênero, raça, etnia, naturalidade, classe social, idade, sexualidade, escolaridade e outros tantos demarcadores, O corpo que transborda forma tece conversações numa reunião de mundos. É pelo desejo em adentrar mundos por meio da pluralidade de corpos (ou corpas) que a exposição apresenta trabalhos inéditos de Kassia Borges, Kaya Agari, Sophia Pinheiro e Claudio Cretti, todos realizados no ano de 2023 especialmente para esta ocasião.

Colocando em diálogo a relação de artistas indígenas e não indígenas, da cosmovisão e da concepção ocidental sobre a vida, daquilo que é animado e daquilo que é inanimado, almeja-se transbordar o que está contido na subjetividade de cada artista. Busca-se, então, um cruzamento estético da arte indígena contemporânea e da arte contemporânea, reunindo produções artísticas que estão em disposição uma à outra.

Uma disposição que encontra nas linguagens das artes visuais, seja na pintura, na escultura, no vídeo etc... um local que traduz a experiência corpórea. Trata-se de perceber o corpo como assunto, como agente, como meio que gera outras formas. De modo que é possível olhar para os trabalhos aqui presentes e perceber o corpo em transbordamento. Doutora em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia, mestre e graduada em Artes Visuais, o contato de Kassia Borges (Goiânia, 1962) com a cerâmica se deu ainda na infância, no ato de brincar com as tradicionais bonecas Ritxoko. Tratam-se de bonecas Karajá, mesma etnia da artista, que retratam a vida na aldeia por meio de figuras que representam seus parentes em atividades diárias, tais como: ralando a mandioca, fazendo uma pintura corporal, pescando numa canoa entre outras.

Sendo a partir da vivência com a sua avó Alice, detentora do conhecimento da cerâmica e da pintura corporal de seu povo, que a artista primeiro se interessou pela arte. Lidando sobretudo com o manejo do barro pela técnica de acordelado, do brunir e da pintura com engobe e pigmentos naturais provenientes de óxidos minerais e da extração vegetal, sua obra dá continuidade à cultura material Karajá. Apresentando uma série de totens em cerâmica com imagens de tetas, vulvas e cobras, principalmente, estes são consequência de um fazer ritualístico que se repete em compulsão. De um ritual que é passado de geração em geração, que se dirige ao rezo das mulheres pajés, uma vez que são elas que detém os conhecimentos das ervas para a produção de chá e de banhos.

Nas palavras da artista, eu vou me tornar pajé, essa é minha missão. Importante também frisar que cada ser da fauna e da flora desempenha uma função específica na cosmovisão indígena, variando conforme as particularidades de cada etnia. Pela perspectiva Karajá, por exemplo, a cobra lembra seu povo da finitude, pois ela está vigiando o buraco da origem da vida no Rio Araguaia, permitindo que os antigos continuem com os antigos e que os jovens não queiram voltar para a imortalidade. Repleta de significados e mistérios, as imagens que são materializadas nas figuras totêmicas levam em si o poder da reza e da reflexão. Pelo devir feminista que evoca Kassia Borges, pode-se também adentrar a obra de Sophia Pinheiro (Goiânia, 1990), uma mulher branca que traz para o campo das artes, em seu sentido amplo, uma militância política que foi passada para ela por sua mãe. Cada qual a sua maneira e lugar de fala, é possível notar uma conversação entre a obra de ambas artistas, como se suas imagem de vulvas e tetas “falassem uma mesma língua”, a das mulheres que lutam pela autonomia e direito de seus corpos. A partir da experiência da alteridade radical, como coloca a própria Sophia Pinheiro, a fim de compreender sobre o que as mulheres indígenas estão fazendo para elas mesmas e seus mundos, suas agências cosmopolíticas e seus feminismos em comunidade, ela desenvolve um trabalho artístico e ativista nas aldeias há mais de uma década. Doutora em Cinema e Audiovisual, mestre em Antropologia e graduada em Artes Visuais, ela é uma aliada das causas dos povos originários e sua prática transita concomitantemente pelo campo do cinema e das artes visuais.

Apresentando uma série de trabalhos realizados com pigmentos naturais que entrelaça as técnicas da pintura e do desenho, a paleta cromática que pulsa na superfície dos papéis carrega a força da terra vermelha e do sangue das mulheres. De um sangue que fala sobre morte e vida, como quem diz: Quem dera o sangue fosse só o da menstruação[1]. Já nos trabalhos em linho, tem-se a passagem de imagens figurativas para imagens mais abstratas, que discorrem sobre a transmutação de superfícies da pedra para o pelo, para a casca da árvore e para a pele de cobra. Aproximando-se por outra via das questões que atravessam a mulheridade e o ativismo indígena, a obra de Kaya Agari (Cuiabá, 1986) se inspira nos grafismos presentes em seu povo Kurâ-Bakairi para a construção de sua poética. Trata-se da compreensão da pintura corporal enquanto resistência Kurâ-Bakairi, uma vez que essa prática foi uma das poucas que conseguiu não ser exterminada pela colonialidade, graças às suas relações cosmológicas anteriores a colonização e a sua capacidade peculiar de metamorfosear, como bem coloca a pesquisadora Isabel Teresa Cristina Taukane em sua tese de doutorado[2] .

Artista e estudante de Nutrição, o corpo saudável tanto por dentro como por fora é o assunto guia de Kaya Agari na elaboração de suas pinturas. De modo que os motivos geométricos e gráficos presentes em seus trabalhos atuam como uma roupagem de proteção, identidade e tradição. Trata-se da compreensão do grafismo enquanto resistência ancestral, provida de saberes cosmológicos e potencialidades artísticas próprias de cada etnia. Realizadas em tecido de algodão tingido por ervas e pintados com jenipapo e urucum, suas pinturas vem de um canal direto entre a artista e a tradição do grafismo Kurâ-Bakairi. Contudo, o fato de sua produção artística “flutuar sobre a parede”, aponta para uma inovação na compreensão da pintura corporal. Como se esta fosse expandida para um campo ampliado, indo da pele humana para a pele do tecido. Pode-se, então, compreender a ideia do grafismo em Kaya Agari como coletiva, própria de seu povo, ao passo que a expressão e a maneira de trazê-la para a exposição é individual, particular da artista. A partilha do comum também aparece nas esculturas de Claudio Cretti (Belém, 1964), artista branco licenciado em Belas Artes que trabalha sobretudo com materiais que fazem parte da cultura material brasileira. Assim como os grafismos de Kaya Agari que não foram por ela idealizados, os materiais utilizados nos trabalhos de Claudio Cretti não foram por ele inventados e tampouco manufaturados.

O que se nota em ambos, cada qual a sua maneira, é uma operação de se produzir artisticamente de forma autoral com aquilo que é concebido coletivamente. Cachimbos, miçangas, artigos de pesca, pedaços de madeira, linhas, cordas e palhas são algumas das materialidades que sobressaem aos olhos em suas esculturas. São materiais que evocam a presença de outros corpos, outros gestos, outros tempos. Pois são elementos que não deixam de ser o que são, por mais que o exercício de sua função tenha sido subvertido pela não funcionalidade da arte. Por exemplo, mesmo que um cachimbo seja impossibilitado de ser utilizado para fumar, como se vê aqui, ele sempre será um cachimbo. De modo que a projeção da fumaça é inerente ao cachimbo, uma vez que ela está em sua agência. E por mais que a forma originária das materialidades anteceda o processo do artista e que desperte agenciamentos, elas só se tornam uma unidade quando articuladas por Claudio Cretti, que além da apropriação dos objetos também projeta e esculpe algumas das peças. É pela junção, pelo encaixe, pelo processo artesanal de esculpir, pela projeção intuitiva e pelo encontro dos objetos que o corpo escultórico transborda.

Neste sentido, é possível pensar na relação entre o agenciamento dos objetos e o estado de escultura. E por que não dizer que esta relação possibilita a criação de corpos mágicos? Nota-se, assim, a presença de um mistério que percorre todos os trabalhos da exposição, seja pelo significado cosmológico das imagens de Kassia Borges, pela composição cromática e política de Sophia Pinheiro, pelos grafismos ancestrais de Kaya Agari ou pela magia que habita as esculturas de Claudio Cretti. Um mistério que é próprio da impossibilidade de compreensão do corpo como uma verdade única. Por tudo isso, o corpo que transborda "forma" tanto como substantivo, tanto como verbo. É com este duplo sentido que a palavra "forma" atua enquanto possibilidade de estar em disposição ao outro, a outras formas, com artistas em viva e contínua transformação. Como mencionado no início do texto, cada corpo é um universo, de modo que existem muitos mundos num só mundo.

 
Carmo Johnson Projects