KAIUMALO
Cada pessoa é um mundo, já escreveu Clarice Lispector. Mas não por isso é impossível perceber algumas semelhanças entre os mundos de acordo com a cultura em que eles se inserem. Assim, ao adentrar no mundo de Kaya Agari, adentra-se também no modo de vida Kurâ-Bakairi, etnia da mesma. E para melhor me familiarizar com seu universo, em maio deste ano estive 12 dias na aldeia Kuiakware e 3 na cidade de Cuiabá, ambas no estado do Mato Grosso, locais onde a artista vive com sua família.
Kaya nasceu no Hospital Geral de Cuiabá em 1986, crescendo na aldeia Pakuera, a aldeia matriz. De 2001 a 2008 ela morou na cidade de Cuiabá em função dos estudos, posteriormente retornando ao território indigena já na aldeia Kuiakware, fundada em 2004 por seus avós. Em 2012 ela voltou à capital com seu irmão Jeferson Agari, ambos ingressantes na UFMT. Na cidade ela vive com seu esposo Elmir Aiakamyna, o filho Kauã Tawagy e as filhas Luma Kawyru, Malu Kaya e Luara Atawy. Na aldeia vivem seu avô Carlos Taukane, a mãe Maisa Taukane, o pai Laércio Agari, os irmãos Felipe Agari e Jeferson Agari e suas respectivas famílias. É lá onde toda sua família se reúne nas férias, festividades e sempre que possível, onde a artista tem sua morada própria, feita da junção das paredes de barro da casa de Bráulio Apy, o avô de seu esposo, com as madeiras da casa de sua avó Vilinta Kaiumalo, primeira casa da aldeia, e o piso colocado por seu finado tio Nilton Maetawa. Trata-se de uma âtâ (casa) erguida a muitas mãos, que transborda em histórias e amor.
Localizada na Terra Indígena Bakairi, a 100 km da sede do município de Paranatinga, a aldeia Kuiakware se encontra num território com mais nove outras aldeias distribuídas numa extensão de cerca de 62 mil hectares do bioma do Cerrado. O território é oriundo da resistência dos Kurâ-Bakairi, que em torno do século XVIII foi expulso de seu lugar de origem, o Salto Sawâpa, pela violência dos colonizadores e dos povos indígenas inimigos. Localizado no município de Boa Esperança, também no Mato Grosso, o Salto Sawâpa é uma área lembrada pelos mais antigos carinhosamente como “reinado de matrinchãs”, pela abundância que este peixe oferecia em termos de alimento.
A diáspora do povo Kurâ-Bakairi fez com que este migrasse em três diferentes direções, interferindo diretamente em sua subsistência e história. Como coloca a antropóloga Edir Pina de Barros no livro “Os filhos do Sol”, um grupo deslocou-se para as cabeceiras do rio Arinos e foi engajado nas atividades mineradoras, o outro (o qual engloba também a família de Kaya) foi para o alto do rio Paranatinga e foi envolvido na agropecuária e o maior grupo foi rumo ao alto do rio Xingu, região conhecida como a primeira terra indígena homologada pelo governo federal.
A Terra Indígena Bakairi é cercada por duas grandes unidades das maiores produtoras agrícolas brasileiras, o Grupo Vanguarda e o Bom Futuro. A presença latente do agronegócio no território faz com que ele seja a principal referência econômica para a aldeia, que vai desde o arrendamento de terra para criação de gado ou plantação de monocultura, até a prestação de serviço para as fazendas vizinhas. Consequentemente, o solo do território já apresenta sinais de erosão e os rios estão sendo poluídos pelos agrotóxicos das lavouras de commodities que se alastram cada vez mais nos arredores e dentro da aldeia. Desde 1980 o agronegócio é o principal responsável pela contaminação e envenenamento do principal rio da região, o Paratininga na língua portuguesa e Pakuera (rio dos Pombos) no idioma Karib. Mesmo diante todas as adversidades, ainda assim este é um rio para pesca do povo Kurâ-Bakairi, que a mantém como símbolo da resistência de sua cultura.
Assim como a pesca, as manifestações culturais dependem da saúde do território, uma vez que está tudo conectado. A palmeira Buriti, por exemplo, fornece grande parte da matéria prima para a feitura dos rituais e da própria casa de rezo, que é toda feita com sua palha. No Kapa, um ritual geralmente promovido com o canto e a dança em agradecimento à natureza, toda a vestimenta é feita da palha do Buriti. Para o ritual, o rosto dos homens é coberto por uma espécie de máscara feita com os fios da palha do Buriti que vai até a altura dos joelhos, cobrindo todo o dorso, sobre uma saia feita do mesmo material. Os braços são cobertos com folhas verdes de outras árvores. Em agosto e setembro deste ano, em decorrência da seca e das queimadas criminosas por todo o Brasil (principalmente no Mato Grosso, o estado que mais queimou), se dançou o Kapa para pedir a chuva.
Durante minha estadia na aldeia pude acompanhar um Kado, ritual que engloba um conjunto de cantos e danças sagradas ou lúdicas. O que presenciei foi um Kado lúdico chamado Iamurikumã, que significa canto e dança das mulheres. Quem o organizou foi Maisa Taukene, que além de ser mãe de Kaya é uma das principais guardiãs da cultura Kurâ-Bakairi em seu território. Na ocasião, ela havia sido convidada pela aldeia Atura, vizinha da Kuiakware, para ensinar as mulheres e meninas a cantarem e dançarem, além de enfatizar a importância da pintura corporal com motivos de grafismos.
Atuando como lugar de afirmação e resistência dos povos indígenas diante as inúmeras violências da colonização sistêmica, é certo afirmar que a pintura corporal marca e afirma a identidade dos povos originários. Durante o Kado, lembro-me da mãe da Kaya insistir para que as moças mais jovens pintassem seu corpo de forma tradicional; na lateral do corpo, da cintura até o tornozelo e não apenas até onde o shorts cobre, na altura da coxa. Ela lembrava as mais jovens que aquela pintura feita de grafismo com tinta natural era a primeira veste de seu povo, por mais efêmera e imaterial que fosse; conceito aprofundado por Isabel Teresa Cristina Taukane, prima de Kaya, em sua tese de doutorado “Kurâ Iwenu (A Nossa Pintura): performance e resistência na pintura corporal Kurâ-Bakairi”.
Os grafismos da pintura corporal Kurâ-Bakairi varia entre homem, mulher e criança e são inspirados em animais tais como libélula, onça, sucuri, peixe, jabuti entre outros. Tal qual em muitas culturas indígenas, ao se vestir com um determinado grafismo corporal, torna-se um pouco aquele animal. No Brasil, geralmente, a tinta corporal é feita de jenipapo e é aplicada com talo de uma palmeira. Entretanto, na atualidade, a pintura corporal não segue uma regra tão rígida tanto no modo (tipo da tinta) como no uso das imagens (referentes a gênero e idade), por mais que a memória ancestral continue a despertar na pele o tempo em que os animais eram gente.
Assim, ao nos deparamos com os grafismos de Kaya sobre tecido de algodão, é possível interpretarmos que a artista faz com que suas pinturas vistam as paredes do "cubo branco" com a presença simbólica dos animais, trazendo um pouco da esperança de um futuro ancestral. Em outras palavras, é como se sua obra realizasse um ritual pictórico para os olhos daqueles que habitam o espaço urbano, despertando em seu inconsciente a memória de que um dia a cidade também foi floresta. Memória esta que segue viva, por mais que o concreto e o asfalto façam com que ela adormeça.
Nas pinturas de grande formato temos uma combinação de grafismos variados que pode ser interpretada em alusão à floresta, local onde todos os animais se encontram juntos e misturados no equilíbrio da vida. E se na floresta muitas vezes conseguimos escutar os animais, por mais que não os vejamos, nas pinturas conseguimos ativar metaforicamente tanto a visão como a audição por meio de representações simbólicas dos grafismos. Como se a polifonia de grafismos despertasse uma pulsação rítmica capaz de evocar a presença de cada animal simbolizado. Tem-se, então, uma visualidade que pode ser lida tal qual uma partitura musical, em que cada grafismo corresponde a um som. Já as pinturas em menor formato trabalham individualmente os grafismos, como se os animais cantassem num solo.
Apresentando pela primeira vez um trabalho em vídeo e uma instalação, além de três vestidos, nestes trabalhos Kaya traz de forma mais explícita a dimensão familiar que se faz presente em toda sua produção. Na maioria das vezes a artista conta com a colaboração da família para a criação de sua produção artística, numa relação de cooperação mútua e de um saber que é passado de geração a geração. Mas além do processo, nestas três obras nota-se a presença direta dos familiares em suas visualidades.
No vídeo, a mãe de Kaya prepara um pagu (mingau) de tapioca em seu fogão de lenha, enquanto discorre em seu idioma, Karib, sobre o papel da cuia e do mingau dentro da cultura Kurâ-Bakairi. O mingau vem de um saber que foi ensinado pela mãe de sua mãe e assim sucessivamente; é o preparo de um alimento que toda a aldeia tem conhecimento, bem como muitos outros povos indígenas, tal qual o grafismo. Após seu cozimento, o mingau é servido numa cuia feita de cabaça, fruto da planta do gênero Lagenaria que é utilizada como cuia em diferentes culturas ao redor do mundo.
A respeito da cuia na cultura Kurâ-Bakairi, como bem coloca a mãe da Kaya, ela serve para muita coisas, como para beber água, comer o mingau e até mesmo para alimentar os espíritos recém mortos. É também um elemento muito utilizado nos rituais de casamento. Os que casam bebem o mingau na cuia e o compartilham com seus sogros para selarem seu matrimônio. Trata-se de um alimento e um modo de servir que vem do saber coletivo, ritualístico e espiritual.
Portanto, em sua primeira individual, somos convidados a adentrar nas cosmologias Kurâ-Bakairi e no mundo de Kaya Agari, que abre as portas de sua casa, apresenta sua família e compartilha o mingau na cuia conosco. Não por acaso a mostra leva o sobrenome de sua ningo (avó) Vilinta Kaiumalo (26/07/1938 – 25/12/2023), que mesmo não se encontrando mais no plano terrestre, segue muito viva na história da família de Kaya. De modo que esta é uma homenagem a ela e é também uma forma de materializar sua presença física na exposição, assim como a presença de todos os familiares por parte materna da artista. Tem-se aqui três vestidos que correspondem a três gerações: um de Kaya, um de sua mãe e outro de sua avó, todos pintados por Kaya e costurados por sua mãe.
Já na instalação, cuias com nomes da família materna da artista são organizadas na parede seguindo a visualidade de uma árvore genealógica; os mais antigos no topo da copa da árvore e os mais jovens abaixo. O trabalho parte de uma decoração que se encontrava na casa da artista na aldeia, em que o nome de seu núcleo familiar (esposo, filho e filhas) foram escritos nas cuias e dispostos de forma alinhada na parede de barro. A partir desta imagem, surgiu a provocação para Kaya trazer ao espaço expositivo algo que é tão próprio de seu mundo, tal qual os vestidos, o mingau e a própria pintura de grafismo. A instalação com as cuias é a resposta a esta provocação, mas é também uma maneira de levar todos os descendentes de Kaiumalo para participarem desta mostra realizada em sua homenagem.
Portanto, Kaya nos lembra que por mais que esta seja uma exposição individual, ela sempre estará acompanhada de sua avó e de todos seus familiares ancestrais e contemporâneos. Que seu fazer artístico autoral é também coletivo. Que seu universo, por mais que seja único e intransferível, é atravessado e constituído por outro ainda maior: o mundo Kurâ-Bakairi.
Paula Borghi
São Paulo, 2024